Neurolinguística
A Neurolinguística é um campo de estudo
interdisciplinar dedicado às relações entre linguagem, cérebro e cognição.
Há quem atribua o início da Neurolinguística, como o fazem Bouton
(1984) ou Lecours e Lhermitte (1979), à publicação, em 1939, do livro Le Syndrome de
Désintégration Phonétique, de Alajouanine, Ombredane (neurologistas) e
Durand (foneticista). Há também os que consideram a Neurolinguística um ramo
(Luria, 1976) ou um subconjunto (Hécaen, 1972) da Neuropsicologia, o que
significa circunscrevê-la ao campo de estudo das perturbações verbais
decorrentes de lesões cerebrais. Para autores como Whitaker e Whitaker (1976),
em função de seu complexo objeto, a Neurolinguística seria uma área
“francamente interdisciplinar” que relaciona linguagem e comunicação humana com
algum aspecto do cérebro ou da função cerebral. Por seu turno, Menn e Obler
(1990) procuram definir a área por meio de seu objetivo, que é, segundo as
autoras, teorizar sobre o “como” a linguagem é processada no cérebro. Mais
recentemente, em um manual de Neurolinguística, Ahlsén define a
Neurolinguística como o estudo da relação entre diferentes aspectos da função
cerebral atinentes à linguagem e à comunicação. Para a autora, que não limita o
campo a estudos atinentes ao contexto patológico, cabe à Neurolinguística
“explorar como o cérebro compreende e produz linguagem e comunicação” (2006:
3). (MORATO, 2012a, p. 168).
Referências:
ALSHÉN, E. Introduction to
Neurolinguistics. John Benjamins Publishing Company
Amsterdam/Philadelphia. 2006. Disponível em:
Introdução revisada do capítulo Neurolinguística,
publicado pela Editora Cortez, São Paulo. In: Mussalin, F.; Bentes, A. C.
(Orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. Vol. 2, 2012
(original 2001).
MORATO, E.M. Metodologia em Neurolinguística. Ciências da Linguagem: o fazer científico. V. 2. In: Gonçalves, A.V.; Góis, M.L.S. (Orgs.). Campinas: Mercado de Letras, 2014a. p. 281-320.
MORATO, E.M. Metodologia em Neurolinguística. Ciências da Linguagem: o fazer científico. V. 2. In: Gonçalves, A.V.; Góis, M.L.S. (Orgs.). Campinas: Mercado de Letras, 2014a. p. 281-320.
1. Introdução: um breve percurso histórico
Edwiges Maria Morato (Unicamp)
A Neurolinguística, precedida por estudos
realizados no século XIX, tem se firmado como um dos mais promissores domínios
da ciência da linguagem.
Inicial e tradicionalmente pautada, por um
lado, pelo localizacionismo estrito e pelos pressupostos do modelo biomédico e,
por outro, pelo estruturalismo linguístico e pelos modelos sociais acerca da
saúde e da doença, a Neurolinguística tem abrigado nas últimas décadas, como
veremos neste capítulo, uma agenda heterogênea de questões provindas seja de
modelos cognitivos, seja de modelos interacionais sobre nossa vida mental.
Um deslocamento epistemológico no campo, do
cognitivismo ao interacionismo, que se dá especialmente a partir dos anos 1980,
é possível ser observado em manuais ou livros-texto publicados a partir desse
período, como o de Lesser e Milroy (1993), Goodwin (2003), Alshén (2007).
Do ponto de vista da demarcação do campo,
as definições e as descrições concernentes ao interesse teórico e metodológico
da Neurolinguística encontradas na literatura da área revelam que as fronteiras
que delimitam seu objeto – as relações entre linguagem, cérebro e cognição -
são de fato movediças. Assim, não é de estranhar que a Neurolinguística,
enquanto disciplina do conhecimento, resulte de verdadeiros clusters de
influência, integrando em torno de seu objeto diferentes áreas como a
Linguística, as Neurociências, a Filosofia, as Ciências Cognitivas, a
Sociologia, as Ciências da Computação, dentre outras. Com isso, tanto áreas das
ciências humanas e sociais, quanto das ciências biológicas e da saúde
encontram-se representadas na agenda científica atual da Neurolinguística. Como
podemos definir, então, esse campo de estudos?
Há quem atribua o início da
Neurolinguística, como o fazem Bouton (1984) ou Lecours e Lhermitte (1979), à
publicação, em 1939, do livro “Le Syndrome de Désintégration Phonétique”, de
Alajouanine, Ombredane (neurologistas) e Durand (foneticista). Há também os que
consideram a Neurolinguística um ramo (Luria, 1976) ou um subconjunto (Hécaen,
1972) da Neuropsicologia, o que significa circunscrevê-la ao campo de estudo
das perturbações verbais decorrentes de lesões cerebrais. Para autores como
Whitaker e Whitaker (1976), em função de seu complexo objeto, a
Neurolinguística seria uma área “francamente interdisciplinar” que relaciona
linguagem e comunicação humana com algum aspecto do cérebro ou da função
cerebral.
Posteriormente aos autores mencionados
acima e, de certo modo, consoante a essa visão mais tradicional, Caplan (1987)
define a Neurolinguística como o estudo das relações entre cérebro e linguagem,
com enfoque no campo das patologias cerebrais e na relação de determinadas
estruturas do cérebro com distúrbios da linguagem. Por seu turno, Menn e Obler
(1990) procuram definir a área por meio de seu objetivo, que é, segundo as
autoras, teorizar sobre o “como” a linguagem é processada no cérebro.
Mais recentemente, em um manual de
Neurolinguística, Ahlsén define a Neurolinguística como o estudo da relação
entre diferentes aspectos da função cerebral atinentes à linguagem e à
comunicação. Para a autora, que não limita o campo a estudos atinentes ao
contexto patológico, cabe à Neurolinguística “explorar como o cérebro
compreende e produz linguagem e comunicação” (2006: 3).
Ainda que professem diferentes abordagens
relativas a distintos modelos e construtos teóricos e metodológicos, todos
esses autores não deixam de considerar que os estudos sobre as condições de
linguagem e de comunicação após algum comprometimento neuropsicológico
constituem, provavelmente, a investigação neurolinguística mais corrente e
prolífera.
Parece óbvio, levando em conta o hibridismo
da palavra, que Neurolinguística diga respeito às relações entre linguagem e
cérebro e que acione dois principais campos do conhecimento humano para
explicá-las, as Neurociências e a Linguística. Isso realmente seria um truísmo
se nós não tivéssemos tantos problemas para dar conta dos complexos processos
que constituem linguagem e cérebro, bem como do modo de funcionamento de ambos.
A despeito do avanço biotecnológico
encontrado em nossa época, muitas das indagações a respeito das relações entre
linguagem e cérebro ainda permanecem à hora atual, como as referentes à
constituição daquilo que chamamos de conhecimento ou aos fenômenos cerebrais
envolvidos nos chamados processos cognitivos superiores (lingagem, memória,
atenção, etc.). Nossos processos cognitivos, vale lembrar, já se mostraram
empiricamente não redutíveis à intimidade do tecido neural, tanto por meio de
estudos considerados metodologicamente invasivos (como os
córticoeletrofisiológicos, realizados em geral em ambiente intracirúrgico),
quanto não invasivos (como os que utilizam ressonância magnética funcional,
tomografia por emissão de fóton único, tomografia por emissão de pósitrons,
potencial evocado relacionado a evento).
Mesmo depois de terminada a chamada “década
do cérebro”, os anos 1990, ainda não podemos prognosticar entre os estudiosos
um consenso em torno das correlações estabelecidas entre linguagem e cérebro.
Assim, um bom começo para entrever as relações que ambos os processo mantêm
entre si - e nas quais intervêm a cultura, as práticas ou experiências
histórico-sociais, o contexto, a interação - é verificar o que estamos
entendendo por uma e outra coisa. A partir daí, naturalmente, não escaparemos
da Filosofia. É fundamentando empiricamente essa questão que estaremos
“fazendo” Neurolinguística.
Se considerarmos que linguagem e cérebro
têm uma relação (ou seja, não são uma mesma coisa e tampouco são coisas
logicamente heterogêneas entre si), de que ordem ela seria? Haveria uma relação
de causalidade entre ambos os processos ou sistemas (na medida em que um
cérebro “defeituoso” causaria uma linguagem ou uma mente “defeituosa”) ou
haveria uma relação de reciprocidade entre eles, na medida em que a estrutura e
o funcionamento do cérebro podem constituir a linguagem e da mesma forma ser
por ela constituídos?
Embora as respostas a essas questões sejam
por vezes apaixonadas e parciais, o que sabemos na atualidade sobre a atividade
cognitiva indica que há na verdade entre linguagem e cérebro uma relação
estreita, baseada na influência recíproca entre diferentes áreas do Sistema
Nervoso Central e vários processos cognitivos com os quais de várias formas
percebemos e interpretamos o mundo.
Linguagem e cérebro, assim, funcionariam
como um sistema dinâmico e flexível cujas regularidades e estabilidades não são
determinadas a priori (ou seja, não são fixadas ou pré-determinadas
biologicamente; não obedecem a padrões estáticos e homogêneos de existência).
Antes, dependem e são constituídos por diferentes fatores de ordem
sociocognitiva (cultural, pragmática, contextual, interacional).
Tendo isso em vista, admitamos, pois, que
Neurolinguística é um campo de arbitragem interdisciplinar cujo foco é o estudo
das relações entre linguagem, cérebro e cognição; admitamos, ainda, que seu
objeto diz respeito, a um só tempo, às ciências humanas, às neurociências e às
ciências da cognição. A partir disso, nosso olhar deve estar voltado para o que
caracteriza tal campo de investigação, para o legado filosóficocientífico que o
tem constituído. Em boa parte por assumir pressupostos e métodos próprios à
Linguística e às Neurociências, a Neurolinguística está sempre colocada frente
aos modos de se conceber e investigar tais relações: em que termos são elas
estabelecidas?
2. A agenda científica
da Neurolinguística
Edwiges Maria Morato (Unicamp)
Apesar de não ter um programa definido de
forma muito precisa, a Neurolinguística grosso modo caracteriza um campo de
investigação que se interessa de maneira geral pela cognição humana e, de
maneira mais específica, pela linguagem e por processos afeitos a ela, direta
ou indiretamente.
A Neurolinguística tem sido, pois, um lugar
de estudo do processamento normal e patológico da linguagem, oral e escrita, da
relação entre semiose verbal e não verbal, da semiologia de patologias de
linguagem, da relação entre normalidade e patologia, das condições de
reorganização linguístico-cognitiva após dano cerebral, das relações entre o
processo de aquisição e o de patologia de linguagem. Um lugar, enfim, de
proposição de construtos ou modelos de processamento cerebral da linguagem e da
cognição. Visto assim, o programa teórico-metodológico da Neurolinguística tem
na questão do Conhecimento seu problema fundamental.
Enquanto disciplina híbrida, a
Neurolinguística tem construído sua agenda científica assumindo pressupostos e
métodos próprios à Linguística e às Neurociências.
Da tradição e da agenda mais atual dos
estudos linguísticos, a Neurolinguística mantém o foco e o interesse na
descrição e na análise da estrutura, organização e funcionamento da linguagem.
Isso implica, além do interesse pelo sistema linguístico e seus diferentes
níveis de constituição, o interesse pela estruturação e gestão das práticas
sócio-culturais, pelo contexto de produção e interpretação linguística, pelos
vários modos de significação não verbais, pelos processos cognitivos com os
quais compreendemos e atuamos no mundo (dentre os quais a memória, a atenção, a
percepção, a gestualidade, etc).
Da tradição de estudo das Neurociências, a
Neurolinguística mantém o foco e o interesse em um conjunto de questões às
voltas com o velho problema mente-cérebro: como o cérebro reage frente às
dificuldades linguísticas e cognitivas que se impõem após o dano neurológico?
Como se desenvolve a plasticidade cerebral e como ela atua no desenvolvimento e
no declínio cognitivo? Como as crianças desenvolvem e usam a linguagem? Qual é
a responsabilidade do cérebro em relação aos processos cognitivos, e qual seria
a responsabilidade destes em relação ao cérebro, sua estrutura e seu
funcionamento? Em que medida é possível “visualizar” substratos cerebrais do
processamento linguístico e cognitivo?
Na esteira das Neurociências, assim como o
faz em relação à Linguística, a Neurolinguística tem se servido de uma complexa
e variada metodologia, tanto de modo quantitativo e experimental, quanto
qualitativo e observacional: estudo da linguagem e da comunicação após lesões
cerebrais por meio de vários recursos metodológicos, como os testes
diagnósticos, a observação da linguagem e da comunicação em ambientes naturais
de produção, as simulações computacionais, a elaboração de modelos de
processamento linguístico e cognitivo por meio de técnicas cada vez mais
sofisticadas (porque funcionais e temporais, não apenas estruturais) de
imageamento cerebral.
Tendo em vista essa dinâmica e híbrida
configuração disciplinar da Neurolinguística, é possível esboçar, sem chegar a
exaurir as possibilidades do campo, sua agenda científica atual:
1. estudo do
processamento normal e patológico da linguagem, oral e escrita, por meio de
modelos ou construtos elaborados no campo da Linguística e no das Neurociências;
2. estudo da repercussão
dos estados patológicos no funcionamento da
linguagem e da cognição, com base na sustentação, refutação ou
construção de teorias linguísticas e cognitivas. Associados a este item estão a
(re) discussão e (re)análise da semiologia tradicional das patologias
neurolinguísticas, bem como da tipologia ou classificação de quadros
nosológicos. Os dados de contextos patológicos, como a afasia ou a Doença de
Alzheimer, por exemplo, por implicarem graus variados de instabilidade nos
processos linguístico-cognitivos, tornam-se cruciais para qualquer teorização
geral sobre o funcionamento da linguagem e da cognição humana;
3. estudo das
condições e características neurolinguísticas do bilinguismo e da
surdez. Tanto a rediscussão de antigos mitos existentes no campo
dos estudos sobre a surdez (como o relativo à idade crítica para aquisição da
linguagem ou a uma suposta concretude cognitiva do pensamento do indivíduo
surdo), quanto das teses sobre a natureza monolíngue ou plurilingue do cérebro
e sobre a natureza inata ou adquirida da competência linguística identificam,
em relação a este item, a contribuição relevante da pesquisa neurolinguística;
4. estudo
neurolinguístico e sociocognitivo do envelhecimento e da neurodegenerescência,
como a Doença de Alzheimer. Estão associados a este item as relações entre
linguagem, memória e consciência no contexto normal e no patológico, a
discussão acerca de vantagens e desvantagens de modelos biomédicos e modelos
sociais do envelhecimento normal e patológico, as caracaterísticas e relações
entre fenômenos linguísticos e cognitivos no contexto do
envelhecimento normal, da Doença de Alzheimer e das afasias, a análise de
discrepâncias observadas no comportamento dos indivíduos em ambientes
fortemente institucionalizados e em ambientes mais naturais de produção de
linguagem e interação;
5. estudo de processos de
significação não-verbais, com destaque para a relação que estes mantêm com a
linguagem e com o contexto comunicacional. Associados a este item estão os
estudos de processos ou estratégias compensatórias de comunicação e os estudos
sobre a dimensão multimodal da linguagem e da interação. Este item diz respeito
à análise de contextos não necessariamente patológicos e não estritamente
verbais, tais como os que focalizam a gestualidade, a música, o corpo, etc;
6. discussão sobre a
questão do método de investigação neurolinguística. Este item refere-se à
questão da constituição, visibilidade e tratamento de dados – o que inclui o
problema da escolha e do aperfeiçoamento de sistemas de transcrição
(linguística e mutimodal) adequados para os fenômenos ou processos focalizados
nas investigações. A questão, assim, recobre múltiplas preocupações: teórica,
metodológica, técnica, ética, jurídica, tecnológica.
O desenvolvimento dessa agenda tem
permitido que a teorização produzida pela pesquisa neurolinguística retorne à
Linguística de forma extremamente produtiva em relação aos interesses gerais da
ciência da linguagem.
A análise dos dados obtidos no contexto
patológico, bem como o estudo sistemático da relação entre linguagem, cérebro e
cognição em diferentes contextos de produção permite diferentes e prolíferos
movimentos teóricos: colabora para o entendimento dos processos normais de
aquisição e desenvolvimento da linguagem e da cognição; promove a construção de
teorias “pontes” no interior da própria Lingüística; atua na relação
interdisciplinar entre a Linguística e outras disciplinas do conhecimento;
contribui para o desenvolvimento teórico e prático de atividades
clínico-terapêuticas, desempenhando também um importante papel social ao
destinar seus interesses científicos à diminuição de impactos e sofrimentos
derivados das patologias cerebrais e ao atuar na recepção social de doenças ou
circunstâncias cujo estigma é ainda forte entre nós.
Não é de se estranhar, portanto, que a
arbitragem interdisciplinar seja o vetor epistemológico que sustenta toda e
qualquer pesquisa produzida na área.
Tanto a tradição europeia, que identifica a
Neurolinguística com os estudos afasiológicos e psicolinguísticos, quanto a
tradição americana de inspiração conversacional e aplicada, que a identifica
com a fundamentação de práticas clínicoterapêuticas e com estudos de aspectos
comunicacionais afetados pela patologia, são bons indicadores da relevância da
área que, cumpre observar, tem se desenvolvido bastante nos últimos anos no
meio acadêmico do País.
3. Metodologia de Pesquisa em Neurolinguística
Edwiges Maria Morato (Unicamp)
No tocante aos métodos empregados pela
Neurolinguística, podemos pensar também em clusters de
influência. A área tem se servido de uma complexa e variada metodologia, tanto
quantitativa e experimental, quanto qualitativa e observacional: estudo da
linguagem e da comunicação após lesões cerebrais por meio de vários recursos
analíticos, como testes diagnósticos, observações pormenorizadas realizadas em
ambientes naturais, protocolos de estudo com foco em determinados processos e
modelos de ação e enquadres cognitivos, simulações computacionais e técnicas de
imageamento cerebral.
Nesse cenário, a análise linguística de
dados obtidos no contexto patológico, bem como o estudo sistemático da relação
entre linguagem, cérebro e cognição em diferentes contextos de produção permite
diferentes e prolíferos movimentos teóricos:
v
colabora
com o entendimento dos processos normais de aquisição e desenvolvimento da
linguagem e da cognição;
v
promove
a construção de teorias “pontes” no interior da própria Linguística;
v
atua
na relação interdisciplinar entre a Linguística e outras áreas do Conhecimento;
v
contribui
para o desenvolvimento teórico e prático de atividades clínico- terapêuticas.
As arbitragens
interdisciplinares e suas implicações metodológicas da Neurolinguística
De maneira breve e esquemática, e levando
em conta as influências que recebe de relações interdisciplinares que mantém
com outras áreas do Conhecimento, podemos apontar certos aspectos
teórico-metodológicos de algumas das tendências observadas no campo da
Neurolinguística.
A pesquisa de natureza clínico-terapêutica
é, sem dúvida, a primeira tendência a ser assinalada. Ligada ao próprio
nascimento do campo e fundadora de sua prática científica, ocupa parte
expressiva da agenda da pesquisa neurolinguística, ainda bastante inspirada no
método clínico. Outras tendências que destacaremos no escopo deste capítulo são
de cunho psicolinguístico, de caráter predominantemente experimental, e de
cunho sociocognitivo, de caráter predominantemente observacional, cujos
interesses principais recaem no estudo da linguagem e da cognição em situações
de uso e de interação. Vejamos a primeira e mais forte tendência
teórico-metodológica do campo, a pesquisa clínica.
Abordagens biomédica e
social na pesquisa clínica e nas práticas diagnósticas
A Neurolinguística em muito deriva dos
estudos dedicados às afasias (Afasiologia) desenvolvidos inicialmente por
médicos, na segunda metade do século XVIII. Apenas em meados do século XX, com
os trabalhos de Roman Jakobson (1954/1981), surgem as abordagens propriamente
linguísticas das alterações de produção e compreensão da linguagem decorrentes
de lesões cerebrais adquiridas.
Herdeiro desse início marcado pela
emergência e consolidação da prática clínica (e do “olhar clínico”, nos termos
de Foucault, 1977/1963), o modelo biomédico normalmente investiga e diagnostica
a afasia
Por meio de exames de neuroimagem, consultas clínicas e
baterias específicas de testes-padrão. Por vezes, isso também é feito com
o concurso da observação rica e detalhada do comportamento geral do paciente,
bem como de entrevistas com ele e seus familiares e próximos. (MORATO,
2010a, p.26-7).
Os temas predominantes do modelo biomédico
relativamente à Doença de Alzheimer, por exemplo, como ressalta Cruz (2008),
estão voltados para os riscos, prevenção e descoberta de biomarcadores, bem
como para a identificação de predisposições genéticas. Essa agenda, ressalta a
autora, define a pertinência do que é considerado como tema, corpus e
dado na pesquisa biomédica.
No ponto em que estamos, poderíamos
indagar: quais as consequências da racionalização da prática diagnóstica em
termos metodológicos, presente nas baterias de teste-padrão e na correlação
anátomo-clínica? O que fazer, por outro lado, quando esses dispositivos
metodológicos não são tomados como fonte exclusiva ou principal das informações
sobre patologia e normalidade?
Se levarmos em conta que nossos processos
cognitivos foram se mostrando – já em tempos em que sequer existia o tomógrafo
- não redutíveis à intimidade do tecido neural (cf. LURIA, 1949/1973), o não
organicismo se encontra hoje entre as fortes tendências no campo das
Neurociências, assim como os estudos centrados no uso e nos contextos variados
de interação se confirmam como tendência importante no campo dos estudos
linguísticos.
No campo das Neurociências convivem métodos
de investigação mais invasivos da atividade cerebral, por meio de estudos
eletrofisiológicos em pacientes com lesões e técnicas de neuroimagem que
atingem não apenas camadas superiores do córtex, mas todo o cérebro (inclusive
regiões mais profundas, como a região do hipocampo, o sistema límbico e a área
subcortical, como a região de tronco cerebral), e métodos menos ou não
invasivos, mais ou menos superficiais, que envolvem bioeletricidade e
mobilização hemodinâmica. Estes últimos, cumpre observar, nem sempre são
considerados dispositivos metodológicos confiáveis para correlações precisas
entre processos linguísticos e cerebrais, patológicos ou não.
Apesar dos formidáveis avanços no campo, os
recursos biotecnológicos de que dispomos ainda não explicam com precisão como o
cérebro funciona e como interage com processos simbólicos e é por eles
influenciado e constituído. Tal situação chama ainda mais a atenção para a
relevância das análises observacionais e experimentais dos processos
linguísticos e cognitivos, que se constituem de fato na face teórica e empírica
mais perceptível da colaboração da Linguística com os estudos que envolvem
linguagem, cérebro e cognição.
Com relação à perspectiva não
estruturalista no campo da Neurolinguística, podemos mencionar os estudos que
se pautam pela análise conversacional das práticas de linguagem de indivíduos
cérebro-lesados (ULATOWSKA et al. 2010; LESSER
e MILROY, 1993; FERGUNSON, 1996; DAMICO et al., 1999;
KLIPPI, 2000; SCHEGLOFF, 2003; LEIBING e COHEN, 2006; GOODWIN, 2003;
CHAPMAN et al.,
1998, dentre muitos outros), bem como aqueles que, a partir de dados obtidos
por meio de protocolos de estudo ou observação de contextos naturais de
produção e compreensão de linguagem de indivíduos com afasia e com Doença de
Alzheimer procuram teorizar sobre processos patológicos e não patológicos de
(re)estruturação e funcionamento da linguagem e da cognição de uma forma geral.
Tanto uma, quanto outra linha de trabalho
coloca em xeque a clássica definição estruturalista de afasia enquanto
alteração essencial da capacidade de realizar operações metalinguísticas e
de Doença de Alzheimer enquanto alteração essencialmente mental (isto é, não
linguística):
A tese de que as afasias e as demências
afetam respectivamente o linguístico e o cognitivo tomados como dimensões dicotômicas (e
não distintas) do conhecimento dificulta uma compreensão abrangente
do que se encontra preservado ou alterado, e do que se reorganiza após o
comprometimento cerebral. (MORATO, 2012b, 184)
Estudos que vimos desenvolvendo no grupo de
pesquisa “Cognição, Interação e Significação” (COGITES) sobre
interpretação e produção de metáforas e expressões formulaicas (idiomatismos e
provérbios) por indivíduos afásicos e com Doença de Alzheimer demonstram que
sua interpretação e uso têm mais a ver com o seu contexto enunciativo, no qual
comparecem sistemas inter-semióticos, enquadres sociocognitivos, relevância
contextual, etc., do que com o grau – maior ou menor – de
metaforicidade. (MORATO et al., 2012a,
2012b, 2010a). Estudos de processos neurofisiológicos da figuratividade chamam
a atenção para os limites e os alcances da correspondência (feita por
neuroimagem e eletrofisiologia, como os potenciais evocados relacionados a
eventos/ERPs) entre atividade cerebral e processos linguísticos complexos:
Coulson faz alusão a modelos de compreensão
de metáfora baseados em estudos de processamento cerebral que indicam que a linguagem
metafórica e a compreensão literal exibem um curso similar em relação
ao tempo gasto e recrutam um conjunto também similar de geradores
neurais (COULSON e MATLOCK, 2001; GIBBS, 1994; GIORA, 1997;
GLUCKSBERG, 1998). Mais do que uma dicotomia, tais estudos sugeririam um continuum entre
o literal e o metafórico.
Outros autores interessados no
processamento do elemento metafórico, com base em tarefas que contrasta ERPs de
metáforas familiares e não familiares observaram que a complexidade da
tarefa teria a ver com a relevância do contexto de produção da metáfora,
independentemente da familiaridade do indivíduo com ela (PYNTE et al, 1996). A
eletrofisiologia, por sua vez, não indicou haver diferença qualitativa na
atividade cerebral associada à compreensão da linguagem metafórica e
literal. Perspectivas teóricas que postulam um continuum ou
falam em acesso direto (GIBBS, 2002; GLUCKSBERG, 1998) apontam
uma inclinação relacional e pragmática no estudo da relação cérebro-linguagem.
Contudo, tais construtos não chegam a formular um modelo específico sobre a
atividade cerebral da metáfora. De todo modo, os achados empíricos apresentados
são interessantes, como os que indicam que a maior duração do tempo de
processamento neurocognitivo de metáforas não familiares se deve à integração
do sentido figurado com o contexto de produção, e não a uma evocação
obrigatória (e posterior rejeição) do sentido literal (GIBBS, 2002) (...).
Futuros estudos, sobretudo aqueles que não
se realizam apenas no ambiente experimental, que levem em conta unidades de
análise maiores do que a palavra (como textos e diálogos) e que considerem os
contextos de produção e a presença de semioses coexistentes à significação, tal
como a informação visual, por exemplo, poderão incrementar o conhecimento sobre
a atividade cerebral envolvida em construções linguísticas complexas. (MORATO,
2012b, p. 197-8)
Ao destacarmos nas pesquisas que temos
desenvolvidos em torno de fenômenos como metaforicidade, atividade referencial
e inferencial, processos de ordem meta e gestão de processos conversacionais,
procuramos compreender um pouco melhor os aspectos linguísticos e cognitivos
que marcam não apenas a carência afásica ou demencial, como também a
forma de constituição de processos não patológicos de significação e de
comunicação. No limite, vias explicativas para ambos os contextos –
patológico e não patológico - acabam por superar os modelos meramente
biomédicos, baseados em biomarcadores não de todo definidos ou
conclusivos e em métodos de investigação linguística e cognitiva
sumários, descontextualizados, quase caricaturais.
O enfoque na natureza sociocognitiva de
fenômenos linguístico-interacionais por meio da observação das operações
realizadas pelos indivíduos em contextos de uso abre possibilidades maiores de
compreensão de seus enquadres cognitivos de interpretação e produção de
sentido, bem como da atividade cerebral concernida.
Como é possível supor, novos conhecimentos
e metodologias têm questionado o método clínico tradicional no terreno mesmo
das preocupações médico-terapêuticas. Modelos sociais de práticas diagnósticas
têm sido reconhecidos no contexto de várias áreas do Conhecimento (como a
Psicologia, a Sociologia, a Medicina) e tem apontado as consequências dos
preconceitos e injunções sofridas por indivíduos com comprometimento neuropsicológico/neurolinguístico.
De fato, a preocupação recente com a recepção social de patologias como as
afasias e a Doença de Alzheimer, bem como de realidades linguísticas não
patológicas, como a surdez, revela o que muitos já indicam como movimentos de
mudança de paradigma, pelo menos no que toca o enfrentamento social da questão
cognitiva (GRAHAM, 2006).
A prática diagnóstica, dessa forma, diz
respeito a todo o corpo social, e não apenas ao médico, ao clínico ou às
pesquisas biomédicas. Duchan e Kovarsky (2005), a propósito, chamam a atenção
para a concepção de diagnose enquanto prática cultural e situada que se
constitui como “um processo e um produto da interação social e do discurso
cotidiano” (DUCHAN e KOVARSKY, 2005, p. 01).
Fonte: MORATO, E.M. Metodologia em
Neurolinguística. Ciências da Linguagem: o fazer científico. V. 2. In:
Gonçalves, A.V.; Góis, M.L.S. (Orgs.). Campinas: Mercado de Letras, 2014a.
p. 281-320
Referências:
MORATO, E.M. “Neurolinguística”. In: Mussalin,
F.; Bentes, A. C. (Orgs.). Introdução à
Linguística: domínios e fronteiras. Vol. 2, 2012 (original 2001). São
Paulo: Editora Cortez. (páginas reproduzidas: 167 a 170).
___________. Metodologia em Neurolinguística.
Ciências da Linguagem: o fazer científico. V. 2. In: Gonçalves, A.V.;
Góis, M.L.S. (Orgs.). Campinas: Mercado de Letras, 2014a. p. 281-320.